Andei conversando com uma amiga sobre um termo psicanalítico e percebi que eu produzo poltronas. Explico:
Desde bem pequeninos, somos marcados pelo ambiente que nos cria (ou não), que nos acolhe (ou não), que nos alimenta (ou nem tanto), enfim, não importa muito se fez ou deixou de fazer, o que importa é de que maneira foi feito ou não foi feito. Essa maneira, refere-se ao que fizemos psiquicamente com o que fizeram conosco em tempos bem remotos.
A forma como somos amamentados, acarinhados, deixados a própria sorte até que apareça alguém pra nos socorrer, os cheiros, gestos, palmadas, toques. Somos marcados pelas formas pelas quais o ser humano é capaz de demonstrar amor (ou outro-s sentimento-s).
Nossa história é alinhavada por afetos, cenas, odores, pessoas inteiras, pedaços de pessoas, pele, poros. Mas o mais incrível disso tudo, é que o que vai importar é a maneira como vamos lidar com o que recebemos ou nem chegamos perto de receber, ou nem nos autorizamos a nos aproximar, enfim, cada um vai dar algum destino ao seu incômodo.
Incômodo porque, atrevidos que somos, cremos que somos capazes de reaver algo de preciosíssimo que perdemos lá atrás. Como acreditamos naquele ditado "Ah, eu era feliz e não sabia", buscamos repetir algo que pensamos ter sido vivenciado, e, ainda por cima, de ter sido extremamente prazeroso.
Como nossa memória é construída como se fosse uma colcha de retalhos, justamente porque não temos condições psíquicas para elaborar e lembrar e abrir tantas trilhas quantas fossem necessárias capazes de armazenar e captar tudo a que somos expostos, nosso psiquismo (precário/humano), preso que está a essa situação inaugural de prazer extremo, tenta incansavelmente encontrar algo significativo, uma pirataria do que pensamos que aconteceu. ISSO, se transforma num emblema da felicidade. O que nos propomos a fazer com isso, cada um a seu jeito, é o que vai poder preencher o passaporte que, depois de todos os carimbos possíveis e imagináveis, ainda é válido, pois estamos vivos, respirando.
Os afetos que nos pertencem e dos quais nos apropriamos, vão sendo conjugados às cenas, aos cheiros, gestos, toques e, para que sejamos minimamente seres racionais, pensantes e falantes, embora pareçamos em alguns momentos pensantes ou falantes, como se nos fosse impossível exercer as duas funções de uma só vez, precisamos nos utilizar de nosso corpo e nossa linguagem, para aí sim, nos deixar conquistar (e conquistar o) pelo outro.
A partir de um mínimo de apropriação do que podemos chamar de nosso, podemos partir para o quanto que fica por ser apreendido, transvertido em palavras, em sentimentos, enfim, nossa comunicação entre nós e nós mesmos já é um refogadão de defasagem, imaginem entre nós e o outro?! Sim, o outro também tem sua história e suas marcas.
Isso tudo pra dizer que algo escapa da nossa relação primordial com o outro, e, além do mosaico que compõe nosso álbum de recordações, "resta" um vestígio e não temos realmente como desdobrá-lo, esmiuçá-lo, e acho que nem queremos, pois não vai ter uma aparência razoável, posto que uma imagem(ou cheiro, ou voz, ou toque,ou tudo junto) passa diante de nós em fração de milésimos de segundos, rapidamente a cena muda toda a sua configuração ou parcialmente, mas esse algo da cena anterior restou e fez uma marca, registrada como algo do tipo: "quero mais". Então, a vontade que dá é de ficar pensando nela insistentemente até formar um quadro 'visísivel' novamente, mas que, não será exatamente como foi, pq passou rápido demais e o que 'construímos" foi apenas essa réplica grotesca do que talvez tenhamos pensado que aconteceu.
Mas será que se tivéssemos, psiquicamente, condições de elaborarmos a cena toda de novo com todos os detalhes, conseguiríamos sair de dentro dela? Será que não seria mortificante ficarmos paralisados dentro da réplica? Afinal, estamos presos ou livres na réplica????
Por isso, em alguns momentos da minha vida, eu produzo poltronas, fulano produz filmes, outros escrevem poesias, outros estudam a morfologia das plantas, tantos outros não conseguem terminar um livro, enfim, é claro que não é (SÓ) por isso! Mas toda essa composição de fatos, fatores e pessoas, emoldura, de certa forma, nossas escolhas, nossas preferências, nossas odiosas repulsas, nossa capacidade de rir, nossa generosidade, nossos humores,...
bjs
ap